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Outros artigos Samuel Huntington e o "choque de civilizações" Elisabeth Hellenbroich Nos dias que se seguiram aos atentados em Nova York e Washington, importantes lideranças políticas e analistas europeus se apressaram em advertir contra o risco de que a reação estadunidense aos acontecimentos pudesse conduzir a uma espiral de violência e a uma escalada que provocasse uma "guerra de culturas" global. Entre estas lideranças, destacaram-se o ministro das Relações Exteriores francês Hubert Vedrine, seu colega alemão H.J. Fischer, os ex-primeiros ministros da Alemanha e da Itália, Helmut Schmidt e Giulio Andreotti, e importantes políticos britânicos. Entre estes, destacou-se o trabalhista Tony Benn, que alertou para o "perigo de mergulharmos numa Terceira Guerra Mundial", se se perpetrasse uma cruzada contra o Islã. O autor intelectual do crescentemente - e lamentavelmente - popular conceito do "choque das civilizações" é o cientista político estadunindense Samuel Huntington, da Universidade de Harvard. Seu livro O choque das civilizações e a recomposição da ordem mundial, publicado em 1996 (edição brasileira da Ed. Objetiva, 1997), lançou a provocativa tese que deflagrou um grande choque e um intenso debate entre as nações em desenvolvimento. O livro resultou de uma série de conferências proferidas por Huntington no American Enterprise Institute, em Washington, como parte de um projeto financiado pela Fundação Smith Richardson, com o título "O cambiante ambiente de segurança e os interesses nacionais estadunidenses". Outra financiadora do projeto de Huntígton foi a Fundação Olin - ambas notórios condutos para operações de inteligência nos EUA. O título do livro não reflete algum tipo de pesquisa acadêmica, mas, em verdade, um projeto geopolítico proveniente dos think-tanks de uma facção "imperial" anglo-americana, que reúne, entre outros: Zbigniew Brzezinski, o homem que planejou a operação "Afghansi" na Guerra do Afeganistão; o ex-secretário de Estado Henry Kissinger, notório por sua oposição às políticas anticolonialistas do presidente estadunidense Franklin Roosevelt; e Bernard Lewis, um dos atuais "gurus" da geopolítica britânica e o principal especialista em islamismo da Universidade de Oxford. Alinhados com o pensamento do geopolitico britânico Halford Mackinder, de que quem controlar o hinter/and eurasiático controlará o mundo, estes seus seguidores modernos defendem a grotesca visão de que, após a Guerra Fria, a maior ameaça aos EUA, a única superpotência remanescente, virá cada vez mais do desenvolvimento de uma "aliança econômica eurasiática", entre a China, índia, Rússia e Estados islâmicos como o Irá. Esses autores mantêm, intencionalmente, um pesado silêncio sobre a verdadeira razão da sua obsessão geopolítica: a crise financeira global e as conseqüências do colapso sistêmico do "Ocidente", aí incluída a posição hegemônica dos EUA. Huntington e Brzezinski representam a posição do setor da elite oligárquica anglo-americana que se aterra a qualquer custo às premissas do falido império financeiro, e prefere correr o risco de deflagrar uma cruzada contra o resto do mundo e, assim, a uma terceira guerra mundial, a abrir mão da sua obsessão geopolítica. Essa tese é cruamente exposta no livro de Brzezinski intitulado The Only World Power - America's Strategy for Dominance (A única potência mundial - a estratégia dos EUA para a dominação), publicado em 1997. Nele, Brzezinsi fala do "tabuleiro de xadrez eurasiático", o campo de jogo que abriga 60% dos recursos energéticos do mundo e no qual os EUA terão que travar futuramente essa "batalha para a dominação". Para assegurar isto, diz Brzezinski, os EUA devem seguir o modelo do Império Romano pagão, utilizando os seguintes meios geopolíticos: evitar disputas entre vassalos e assegurar a dependência destes em questões de segurança; manter submissos e proteger os Estados tributários; e assegurar que "os povos bárbaros não unam forças". As teses de Huntington O livro de Huntington é um trabalho confuso e repleto de sofismas, uma mistura de axiomas obscuros e clichês populistas. Longe de permitir guiar-se por considerações de uma imagem judaico-crista do homem, o autor pensa de acordo com as categorias de uma imagem do homem bestial e "hobbesiana". O seu credo segue a linha do exposto na novela de Michael Dibdin, Dead Lagoon (Lagoa morta): "Não podem haver amigos verdadeiros sem inimigos verdadeiros. A menos que odiemos o que não somos, não podemos amar o que somos. Estas são as velhas verdades que estamos dolorosamente redescobrindo após mais de um século de canto sentimental. Aqueles que as negam, negam sua família, sua herança, sua cultura, sua progenitura, a si próprios. Elas não serão esquecidas facilmente." Consideremos, agora, as principais teses do choque de culturas de Huntington. 1. No mundo pós-Guerra Fria, o "conflito de superpotências" foi suplantado pelo "conflito entre culturas". Segundo Huntington, isto significa que, crescentemente, a Humanidade se dividirá ao longo de "linhas de batalha culturais" e conflitos entre "grupos culturais", como conflitos entre diferentes civilizações, que se tornarão o fator central na política global. De acordo com esse argumento, os Estados não definem os seus interesses políticos segundo categorias de "cooperacão econômica", mas por noções culturais, e o conflito intercultural em torno de idéias políticas vindas do Ocidente será substituído por um "conflito intercultural em torno de cultura e religião". 2. O equilíbrio de poder entre círculos culturais mudará e o Ocidente (pelo que Huntington considera a América do Norte e a Europa) perderá influência relativa nas próximas décadas. Para apoiar este argumento, Huntington apresenta uma série de estatísticas segundo as quais, nas próximas três décadas, o Ocidente perderá influência, não apenas demo graficamente, mas também no tocante ao controle sobre o território mundial, a produção industrial e participação no Produto Interno Bruto (PIB) mundial. Huntington vê a maior ameaça ao Ocidente numa combinação de "ressurgência islâmica" e "afirmação asiática". Ele coloca assim a questão: "No mundo emergente, as relações entre Estados e grupos de diferentes civilizações não serão próximas e, freqüentemente, serão antagonísticas. De fato, algumas relações intercivilizacionais são mais propensas a conflitos que outras. No nível micro, as linhas de fratura mais violentas ocorrem entre o Islã e seus vizinhos ortodoxos, hindus, africanos e cristãos ocidentais. No nível macro, a divisão dominante é entre 'o Ocidente e o resto', com os conflitos mais intensos ocorrendo entre sociedades muçulmanas e asiáticas de um lado, e o Ocidente do outro. Os perigosos choques do futuro irão, provavelmente, emergir da interação entre a arrogância ocidental, a intolerância islâmica e a assertividade chinesa." 3. Huntington faz uma distinção entre conflitos no nível "micro" (dentro de áreas locais), nos quais existam "guerras de linhas de fratura" entre muçulmanos e não-muçulmanos, ou, como na guerra na antiga Iugoslávia, muçulmanos contra ortodoxos, e "macroconflitos" entre grupos e Estados de culturas diferentes. 4. Huntington considera o crescimento demográfico como o fator mais perigoso por trás da "ressurgência islâmica": "O crescimento da população islâmica é, assim, um importante fator contribuinte para os conflitos ao longo das fronteiras do mundo islâmico, entre os muçulmanos e outros povos." A falsidade das premissas de Huntington sobre a guerra entre culturas demonstra que ele vê a busca por uma identidade cultural e a "revitalização das religiões" (cristianismo, confucianismo, islamismo e hinduísmo), tudo agrupado, como um motivo para os presentes conflitos ao redor do globo, os quais substituíram os conflitos ideológicos da Guerra Fria. As grandes potências mencionadas por ele são seis: EUA, Europa, Rússia, China, índia, Japão e o mundo islâmico. Em sua análise, Huntington bloqueia histericamente a crise financeira sistêmica e a realidade econômica na qual se encontra mergulhada a maioria dos países do setor em desenvolvimento, como resultado da derrocada financeira que se aprofunda, das intoleráveis condições impostas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e a sabotagem sistêmica do desenvolvimento econômico. Huntington vê na "autoconscientização asiática", baseada no crescimento econômico, e na "auto conscientização muçulmana", baseada no crescimento populacional, os dois maiores desafios que produzirão um efeito drasticamente desestabilizador na política mundial ao longo do século 21. "O crescimento populacional nos países muçulmanos e, particularmente, a expansão das fileiras na faixa etária de 15 a 24 anos, proporciona recrutas para o fundamental ismo, o terrorismo, as insurgências e a emigração", diz ele. Em outro trecho, afirma: "Nos anos vindouros, as populações muçulmanas serão populações desproporcional mente jovens, com um notável bolsão demográfico de adolescentes e indivíduos na casa dos 20 anos. Além disto, os indivíduos nesta faixa de idade serão majoritariamente urbanos e terão pelo menos uma educação secundária... Jovens são os protagonistas de protestos, instabilidade, reformas e revolução." E: "Populações maiores necessitam de mais recursos e, por conseguinte, os indivíduos de sociedades com populações densas e/ou rapidamente crescentes tendem a se expandir, ocupar territórios e exercer pressões sobre outros povos menos demograficamente dinâmicos. O crescimento da população islâmica é, assim, um importante fator contribuinte para os conflitos ao longo das fronteiras do mundo islâmico, entre os muçulmanos e outros povos." O que Huntington não menciona, evidentemente, é o fato de que o sistema financeiro do mundo globalizado está atualmente condenando essas nações populosas à pobreza, à pilhagem dos seus recursos naturais e, portanto, contribuindo para a sua instabilidade social. Mas voltemos a ele: "De qualquer modo, nas próximas décadas, o crescimento econômico asiático terá efeitos profundamente desestabilizadores sobre a ordem internacional dominada pelo Ocidente, com o desenvolvimento da China, caso continue, produzindo uma drástica mudança de poder entre civilizações." Como se vê, Huntington também considera o crescimento econômico como uma "ameaça". A única conclusão real que se pode tirar disto é que a suposta ameaça é o desafio à presente dominação anglo-americana do sistema financeiro mundial, e não o resultado "natural" de aspirações econômicas ou políticas. Insiste Huntington: "Enquanto isso, o crescimento da população muçulmana será uma força desestabilizadora, tanto para as sociedades muçulmanas como para seus vizinhos. O grande número de jovens com educação secundária continuará a reforçar a ressurgência islâmica e promover a militância, o militarismo e a emigração entre os muçulmanos. Como resultado, os anos iniciais do século 21, provavelmente, presenciarão uma ressurgência já em marcha do poder e das culturas não-ocidentais e o choque dos povos de civilizações não-ocidentais com o Ocidente e entre si." Um fator adicional de ameaça para o Ocidente, de acordo com Huntington, se dará na área da proliferação de armas de destruição em massa: "Na área da proliferação de armas, as relações islâmico-confucianas estão firmemente estabelecidas." Com isto, ele quer dizer que a China é a principal fonte de armas para países como o Irá e o Paquistão. Diante do fato de que a guerra entre culturas poderá ser uma fonte de conflitos de destruição em massa, Huntington recomenda ao Ocidente uma política de "apartheid tecnológico", de "cenoura e chicote", especialmente para as nações islâmicas e asiáticas. Huntington não oculta o fato de que, para assegurar essa hegemonia, as guerras do futuro serão guerras de população e recursos. Ele faz a seguinte consideração referente à Guerra do Golfo: "A Guerra do Golfo foi a primeira guerra de recursos entre civilizações do período pós-Guerra Fria. O que estava em jogo era determinar se o grosso das maiores reservas mundiais de petróleo seriam controladas pelos sauditas e governos de emirados dependentes do poderio militar ocidental para a sua segurança ou por regimes antiocidentais independentes, que seriam capazes e poderiam estar dispostos a usar a arma do petróleo contra o Ocidente... Antes da guerra, o rã, o Iraque e o Conselho de Cooperação do Golfo, de um lado, e os EUA do outro, se acotovelavam pela influência no Golfo. Depois da guerra, o Golfo Pérsico era um lago estadunidense." Ao mesmo tempo em que vê na "dinâmica do Islã" uma fonte permanente de guerras relativamente pequenas ao longo de linhas de fratura, Huntington caracteriza a "ascensão da China" como a "fonte potencial de uma grande guerra cultural entre 'Estados centrais": "Por mais de duzentos anos, os EUA têm tentado evitar a emergência de uma potência majoritariamente dominante na Europa. Por mais de cem anos, começando com sua política de 'Portas Abertas' para a China, têm tentado fazer o mesmo no Leste da Ásia. Para atingir estes objetivos, travaram duas guerras mundiais e uma guerra fria, contra a Alemanha Imperial, a Alemanha Nazista, o Japão Imperial, a União Soviética e a China Comunista. Se prosseguir, a emergência da China como a potência regional dominante no Leste da Ásia desafia este interesse central dos EUA. A causa de conflitos subjacente entre os EUA e a China é a sua diferença fundamental sobre qual deverá ser o futuro equilíbrio de poder no Leste da Ásia." Em face do fato de que as relações entre os EUA, de um lado, e a China, Japão e outras nações asiáticas, do outro, serão prenhes de conflitos, na avaliação de Huntington, "poderá ocorrer uma guerra importante se os EUA desafiarem a ascensão da China como a potência hegemônica na Ásia. Se ela vir como uma grande guerra, então, os laços confucinano-islâmicos se reforçariam ainda mais, como mostra o exemplo do eixo Teerã-lslamabad-Pequim". Huntington desenvolve o cenário para uma guerra futura como numa novela de ficção científica, uma guerra de culturas em que a China, o Japão e o mundo islâmico lutariam contra o resto do mundo. A Índia declara guerra ao Paquistão, a Rússia e a índia lutam contra a China, mísseis nucleares são disparados contra a Bósnia, Argélia e Marselha, e assim por diante. Ao final, depois de expor em detalhes como guerras futuras eclodirão, inevitavelmente, em tais circunstâncias, Huntington explica - para proteger-se de potenciais críticos - que o Ocidente, em vez de tirar vantagem da sua superioridade universalmente majoritária, deveria preocupar-se em "entender" as outras culturas. O fato de que ele não está, realmente, falando seriamente, pode ser visto em sua recente entrevista ao semanário alemão Die Zeit, em 17 de setembro de 2001. Perguntado sobre se os ataques nos EUA poderiam levar a uma "guerra cultural num plano global", ele respondeu: "Precisamos de uma coalizão, que também inclua Estados islâmicos... Se estes Estados mostrarem solidariedade com os criminosos, crescerá o perigo de que ocorra, na verdade, um 'choque de civilizações', e não meramente uma luta das sociedades civilizadas contra as potências do mal." Em 25 de maio último, numa entrevista ao diário italiano II Sole 24 Ore, Huntington afirmou que a China e os Estados islâmicos representavam a principal ameaça aos EUA. O principal problema dos Estados islâmicos, disse ele, é o crescimento demográfico: A crescente taxa de nascimentos provocou a elevação da percentagem de jovens como fração da população total. Os jovens recorrem à militância extrema e escolhem posições radicais." Temos aqui a essência da visão geopolítica de Huntington. É a própria existência de muçulmanos pobres e chineses se desenvolvendo economicamente que ele e seus senhores vêem como uma ameaça. A alternativa aos seus delírios é criar um novo sistema mundial de cooperação entre Estados nacionais, que proporcione desenvolvimento econômico a todas as nações. A urgência da adoção de tal sistema, seguindo os princípios da "Nova Bretton Woods" promovida por Lyndon LaRouche, não poderia ser mais clara.
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